O rei está nuTHEOBSERVERA falência da FTX, do jovem Sam Bankman-Fried, precipita a crise do mercado de criptomoedas
Por Edward Helmore, de Nova YorkCelebridade. Bankman-Fried se apresentava como um operador disposto a regular o mercado de criptomoedas, enquanto se aproximava de artistas como Katy Perry e Orlando Bloom - Imagem: Saul Loeb/AFP e Image Press/NurPhoto/AFP

Ele dirige um Toyota Corolla para ir ao trabalho, vive numa casa com outros dez moradores e um cachorro goldendoodle chamado ­Gofer (Pateta), às vezes dorme embaixo de sua mesa em um pufe e valia, até dias atrás, dezenas de bilhões de dólares.

Mas na sexta-feira 4, Sam Bankman-Fried, rei das criptomoedas de cabelos encaracolados e megadoador democrata que afirmava reinventar as finanças digitais, desistiu da luta de uma semana para salvar a FTX, que em apenas três anos desde seu lançamento se tornou a segunda maior casa de câmbio digital do mundo. Ele renunciou ao cargo de executivo-chefe e a empresa e 130 afiliadas foram colocadas sob proteção contra falência nos Estados Unidos.

No espaço de alguns dias, o homem de 30 anos perdeu uma fortuna de 17 bilhões de dólares com uma série de crises. As preocupações com a FTX acumularam-se até domingo 6, quando os investidores sacaram 5 bilhões de dólares de seus cofres digitais. A corrida terminou na manhã da terça 8, quando a FTX bloqueou mais retiradas na tentativa de se manter solvente. A Bloomberg chamou o caso de o maior colapso em um dia de riqueza pessoal de todos os tempos.

O advogado da FTX disse que a empresa investigava “anomalias com movimentos de carteira relacionados à consolidação de saldos da FTX entre as ­exchanges”. Isso ocorreu depois que a agência Reuters informou que ao menos 266 milhões de dólares foram retirados da FTX em 24 horas e que Bankman-Fried pode ter transferido secretamente 10 bilhões em aplicações de clientes da FTX para a Alameda Research, fundo de hedge que ele possui e é administrado por sua namorada, Caroline Ellison.

Foi o maior colapso em um dia de riqueza pessoal de todos os tempos

Bankman-Fried buscou recentemente o apoio do arquirrival Changpeng “CZ” Zhao, fundador da Binance, a maior exchange de criptomoedas do mundo. Zhao concordou primeiro, depois desistiu, deixando Bankman-Fried ainda mais exposto e à procura de outros investidores para preencher um buraco de 8 bilhões de dólares em seu saldo comercial. O colapso tem enormes implicações para milhares de clientes da FTX e para a indústria de criptomoedas e seu capitalismo altamente especulativo.

Bankman-Fried estabeleceu-se como a face aceitável de um setor obscuro visto com profunda suspeita pelos reguladores como um refúgio para criminosos, lavadores de dinheiro e destruidores de sanções, como um cassino online gigante, no qual corretores caseiros podem acumular perdas que alteram a vida. Ele gastou milhões para financiar a campanha presidencial de Joe Biden, tornando-se o maior doador democrata depois do financista ­George Soros e cortejando outros nomes de esquerda. “Os políticos falam alto sobre a fonte de dinheiro dos outros candidatos”, disse Charles Elson, especialista em governança corporativa, antes do colapso da FTX. “Se você recebe dinheiro de alguém que explode, perguntas serão feitas.”

Em Washington, Bankman-Fried fez lobby por uma regulamentação mais rígida, num esforço para promover seu próprio negócio e tornar o setor aceitável para os reguladores bancários dos Estados Unidos. Agora a reputação que ele construiu está destruída. “Lamento profundamente que tenhamos chegado a este lugar e por meu papel nisso. Eu ferrei tudo”, disse aos funcionários na manhã da terça-feira 8. No mercado, a implosão da FTX é chamada de “momento Lehman” da criptomoeda, referência ao colapso do banco Lehman Brothers em 2008 que desencadeou a crise financeira global.

A figura central da história é, em muitos aspectos, o arquétipo do prodígio do Vale do Silício: jovem, nerd, socialmente desajeitado, inteligente e encarregado dos controles de instrumentos financeiros misteriosos, mas poderosos, que podem afetar a economia do mundo real. Segundo o perfil no New York ­Times, sua estranheza parecia “autocalculada”, mas por um tempo pareceu que ­Bankman-Fried – ou SBF, como ele mesmo se chama – tinha um talento de verdadeiro sábio para o negócio de criptomoedas. Ele cresceu na Área da Baía de São Francisco, na Califórnia, numa família de acadêmicos, e frequentou uma das melhores escolas particulares de ensino médio, a Crystal Springs Uplands, em ­Hillsborough. Seus pais são professores de Direito na Universidade ­Stanford e ele nasceu no campus. A carreira acadêmica de sua tia Linda Fried é ainda mais ilustre. Epidemiologista, ela é reitora da Escola de Saúde Pública Mailman da Universidade Colúmbia.

Em 2014, depois de se formar em Física no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, ingressou na empresa comercial Jane Street Capital, de Nova York, onde trabalhou como estagiário durante o tempo de estudante. Sobre sua formação, ele disse: “Nada que aprendi na faculdade acabou sendo útil… além de, tipo, desenvolvimento social. No lado acadêmico, porém, é tudo inútil... a escola simplesmente não é útil para a maioria dos empregos”.

Círculo. Em um evento da FTX nas Bahamas, desfilaram Tony Blair, Bill Clinton e Gisele Bündchen. O jovem financista foi um grande doador de campanhas do Partido Democrata - Imagem: FTX/CriptoBahamas e Freya Morales/ONU

Em 2017, ele voltou para a Califórnia, onde trabalhou para o filantrópico Centro para o Altruísmo Eficaz. Pouco depois, fundou a Alameda Research, empresa de corretagem quantitativa com o nome de uma cidade da Califórnia, mas com sede em Hong Kong, e começou a especular com bitcoin. A FTX foi fundada dois anos depois. Sua riqueza aumentou durante a pandemia e, na mesma medida, Bankman-Fried tornou-se figura pública. Ele falou sobre seu compromisso com o “altruísmo eficaz”, abordagem da filantropia baseada em dados, favorecida pelos bilionários da tecnologia. Planejava doar sua fortuna, segundo disse. Gravou vídeos no Twitter com a estrela do futebol americano Tom Brady e jantou com o ator Orlando Bloom e a cantora Katy Perry. A FTX colocou seu nome no estádio esportivo Miami Heat, na Flórida.

Quando Bankman-Fried começou a resgatar outras plataformas de criptomoedas durante a última crise do setor, no verão, recebeu muitos elogios de ­Anthony Scaramucci, porta-voz de ­Donald Trump na Casa Branca, que o comparou ao fundador do banco JP Morgan. “Sam ­Bankman-Fried é o novo John Pierpont Morgan. Ele está resgatando os mercados de criptomoedas da mesma forma que o JP Morgan original fez após a crise de 1907”, elogiou Scaramucci. O banco de Morgan passou a dominar Wall Street por mais de um século. A FTX durou três anos.

A empresa é simples em conceito: uma plataforma de negócios igual a qualquer Bolsa de Valores. Gerido a partir de escritórios em Chicago e depois em Miami, mas com sede no opaco paraíso fiscal das Bahamas, aproveitou o que as autoridades locais promoviam como uma jurisdição regulatória ideal para “criar abundância” para “um centro financeiro do futuro”. A FTX organizou eventos públicos atraentes. Em maio, o evento Crypto Bahamas levou o mundo a Nassau para um encontro luxuoso com a presença da supermodelo­ ­Gisele Bündchen e seu então marido Tom ­Brady. Ostentando suas habituais bermudas, Bankman-Fried dividiu o palco com Bill Clinton e Tony Blair.

Em Washington, sede da Comissão de Valores Mobiliários dos EUA, o órgão que procura colocar as criptomoedas em conformidade com as leis de finanças do país, Bankman-Fried apresentou-se como o homem com quem se podia fazer negócios.

Ele apoiou as causas políticas democratas e deu 100 milhões de dólares para as eleições de meio de mandato recém-concluídas. Recentemente, lançou a possibilidade de investir 1 bilhão de dólares na campanha presidencial de 2024, mas pouco depois chamou a ideia de “burra”. Defendeu uma regulamentação mais rígida das criptomoedas e promoveu a tese de listas negras de endereços digitais ligados a crimes financeiros. Em depoimento escrito à audiência do conselho de supervisão de estabilidade financeira do Tesouro dos EUA, em julho, Bankman-Fried disse que “a FTX tem como objetivo combinar as melhores práticas do sistema financeiro tradicional com o melhor do ecossistema de ativos digitais”.

Nem todo mundo comprou, porém, a sua visão de mundo. Perianne Boring, fundadora e executiva-chefe do grupo setorial Câmara de Comércio Digital, disse em entrevista à Bloomberg: “Ele não é a cara da indústria e nunca foi”.

No mercado, a implosão da FTX é chamada de “momento Lehman” da criptomoeda

“A FTX furou todos os faróis vermelhos que poderia furar”, disse Joshua ­Peck, fundador da gestora de ativos criptográficos TrueCode Capital e autor de um livro no prelo sobre criptomoedas. “É registrada nas Bahamas, nunca alcançou a Compliance Soc 2, certificação do setor que diz que seus processos internos são de alta qualidade, e tem muita alavancagem. É uma confusão gigante.” A FTX foi procurada para comentar.

Bankman-Fried ergueu as mãos e tuitou na quinta-feira 10 que “a má rotulagem interna de contas relacionadas a bancos” fez com que ele estivesse “substancialmente errado” em seus cálculos sobre as quantias que a exchange havia emprestado aos usuários para deixá-los fazer apostas alavancadas – tomar dinheiro para negociar, ampliando potenciais ganhos e perdas.

Mas há outra versão em curso, a de que Bankman-Fried foi boicotado por seu amigo que se tornou rival na ­Binance. Zhao investiu 500 milhões de dólares durante o verão na moeda da FTX, um token chamado FTT. No domingo, a ­Binance cobrou a dívida. A FTX não conseguiu atender à solicitação. Quando outros investidores souberam do problema, começou uma espécie de corrida aos bancos que saiu do controle.

Alguns teorizaram que Zhao se ressentiu do pedido de SBF por uma regulamentação mais rígida. A Binance não respondeu a um pedido de comentário. No domingo, Zhao postou um tuíte no qual explica sua decisão de sair do FTT: “Demos apoio antes, porém não vamos fingir amor depois do divórcio. Não somos contra ninguém, mas não apoiaremos pessoas que fazem lobby contra outros players do setor pelas costas. Vamos em frente”. Zhao também disse em nota aos funcionários que o colapso da FTX “não era uma vitória”, havia “abalado severamente” a confiança no setor e desencadearia um maior escrutínio regulatório.

Seja qual for a causa de sua queda, longe de ser o salvador da criptomoeda, Bankman-Fried agora começa a parecer o causador de sua ruína. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1235 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título "O rei está nu "