Meritocracia às avessasSão PauloConvidado para assumir a Secretaria de Educação paulista, Feder deixou um desastroso legado no Paraná
Por René RuschelSem conversa. O secretário não repôs as perdas salariais de professores e tampouco quis dialogar com a categoria - Imagem: Joka Madruga/APP Sindicato/PR e SEED/GOVPR

Renato Feder está de malas prontas. Deixará a Secretaria de Educação do Paraná, no governo de Ratinho Jr., do PSD, para assumir a pasta homônima em São Paulo, a convite do governador eleito, Tarcísio de Freitas, do Republicanos. Para os professores e educadores paranaenses, o empresário deixará pouca saudade e péssimas lembranças.

Em 2020, sua ascensão ao Ministério da Educação bateu na trave. Com a queda do histriônico Arthur Weintraub, aquele que pediu a prisão dos ministros “vagabundos” do STF em uma reunião ministerial e depois buscou refúgio nos EUA, Feder teve o nome cogitado para substituí-lo. Só não emplacou porque o ex-capitão descobriu que ele é amigo de João Doria, à época governador de São Paulo e já um desafeto político.

Graduado em Administração e Economia, Feder é sócio da Multilaser, um dos maiores players no segmento de eletrônicos e suprimentos de informática nacional. De olho na carreira política, afastou-se do Conselho de Administração da empresa em 2019. De acordo com documentos divulgados pela CNN Brasil, a Multilaser assinou dois contratos com o governo Bolsonaro desde então. O primeiro, no valor de 14,2 milhões de reais, em dezembro de 2019, para fornecer 28 mil tablets ao IBGE. O outro foi firmado com dispensa de licitação, em maio de 2020, para a venda de 100 mil máscaras cirúrgicas ao Ministério da Educação.

O empresário tentou privatizar a gestão de escolas públicas e defende um sistema de vouchers para os alunos migrarem para o ensino privado

Ele próprio resumiu a sua experiência como educador em uma publicação no Twitter, há dois anos: “Em 2018, saí da operação da empresa para me dedicar à educação pública. Paralelo a isso, trabalho com educação há 20 anos, como professor de matemática, economia e diretor de escola filantrópica”. Coautor de um livro, Carregando o Elefante – Como Transformar o Brasil no País Mais Rico do Mundo (Editora Leopardo), escrito em parceria com o empresário Alexandre Ostrowiecki, Feder e seu parceiro defendiam a privatização total de escolas e universidades. Os autores citam como exemplo “uma série de casos de sucesso inquestionável que está mudando a visão de especialistas a respeito da melhor estrutura educacional, apontando as vantagens dos sistemas de vouchers”.

Para Feder e Ostrowiecki, todos os alunos deveriam estudar em escolas particulares, e o governo se encarregaria de subsidiar as mensalidades dos mais pobres. Receberiam uma espécie de vale para pagar escolas de livre escolha, desde que elas estivessem dentro dos parâmetros estipulados. Com o fim das escolas públicas, o papel do Ministério da Educação seria irrelevante. Logo, a pasta poderia perfeitamente ser substituída por uma agência reguladora para fiscalizar as escolas privadas. Ratinho Jr. encantou-se com a ideia e convidou Feder para seu governo.

À frente da Secretaria de Educação no Paraná, o empresário resolveu colocar em prática alguns de seus conceitos. Os primeiros derrotados foram os servidores da educação. Professores concursados tiveram uma perda salarial de 35%, levando em conta a inflação no período. A reposição anual das remunerações, prevista na lei estadual, não foi cumprida.

Paralelamente, Feder tocou uma agenda privatista nas escolas públicas. Segundo o Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná, o governo agora credencia, por meio de edital, grupos empresariais para assumir a gestão de 27 escolas da rede. Não haverá processo licitatório, e os sindicalistas denunciam um “jogo de cartas marcadas” para beneficiar um seleto grupo de empresários que atendem aos critérios.

Militarização. O estado coleciona denúncias de abusos cometidos pelos militares contra os alunos paranaenses - Imagem: Sd Ismael Ponchio/CPM/GOVPR

Docentes e pesquisadores da Universidade Estadual de Londrina e da Universidade Federal do Paraná lançaram manifestos de repúdio ao projeto. “(O edital) desresponsabiliza o Estado da sua função social no atendimento e na gestão da demanda de escolarização de crianças, jovens, adultos e idosos, destitui os fins públicos da educação básica, dissemina a gestão gerencialista e meritocrática da educação pública”, alerta a nota da UEL. “O edital não é só inadequado, é inconstitucional, pois fere a Lei de Diretrizes e Bases da Educação”, emenda ­Cássia ­Domiciano, pesquisadora do Departamento de Planejamento e Administração Escolar da UFPR.

No auge da pandemia de Covid-19, em 2021, Feder teve uma atitude burlesca durante a realização de uma videoconferência com os chefes dos Núcleos Regionais de Educação para discutir o tema das aulas remotas. A reunião seguia normalmente até começar o debate sobre uso de câmeras de vídeo pelos alunos durante o período de aulas online. Os educadores tentavam argumentar que estudantes carentes, notadamente nas cidades menores do interior do estado, não tinham acesso à internet e, por vezes, nem a computadores ou tablets. “Mas é obrigatório!”, berrou o secretário, antes de concluir: “Ai, mas o aluno não tem webcam… Se vira! Se vira!”

Outro imbróglio foi a retomada das aulas presenciais. Enquanto o mundo civilizado defendia o lockdown, o secretário tentava impor o retorno dos alunos e professores às salas de aula, mesmo naquele momento em que milhares de pessoas eram vítimas da doença. O principal case do secretário-empresário foi, porém, a implantação das escolas cívico-militares, um projeto bolsonarista que Feder abraçou com unhas e dentes.

Atualmente, existem 207 escolas cívico-militares no Paraná, 195 administradas pelo governo estadual e 12 por programas federais. Trata-se do estado com o maior número de unidades instaladas. A pressão do governo junto aos pais e servidores para militarizar as escolas foi intensa, com direito a “boca de urna” por ocasião da consulta à comunidade escolar. Desde a implantação, surgiram diversas denúncias contra policiais por maus-tratos, violência e até mesmo assédio sexual em adolescentes.

Adepto do projeto bolsonarista, Feder multiplicou as escolas cívico-militares no estado. São mais de 200

O governo não reconhece que os resultados da militarização ficaram muito aquém do esperado. Há uma insatisfação crescente por parte de pais, inclusive porque o desempenho de parcela expressiva dos alunos piorou. Ratinho Jr. enviou à Assembleia Legislativa um projeto que muda a gestão das escolas no próximo ano. Aos militares restará a função de zelar pela disciplina, de acordo com o regimento interno das escolas, a prever normas de comportamento e uso de uniforme. “O objetivo deste modelo de militarização foi estabelecer o controle na gestão da escola e dos docentes, com a retirada de autonomia do trabalho dos educadores”, avalia Vanda Santana, integrante do Observatório de Escolas Militarizadas do Paraná.

“Os quatro anos que o secretário ­Feder esteve à frente da educação no Paraná foram de retrocesso das práticas educacionais emancipatórias e autônomas”, resume Walkíria Olegário Mazeto, presidente do sindicato dos professores. Para ela, o descaso com a gestão democrática, a aproximação de um modelo empresarial com base meritocrática e o não diálogo com as comunidades escolares e o sindicato são exemplos desse equívoco.  

Mazeto explica que a política educacional do governo se baseia no que ela chama de pedagogia dos resultados. “Este modelo está assentado na perspectiva empresarial de exigências no cumprimento de metas e um melhor ranqueamento no Ideb e no Pisa. A otimização, a operacionalização e a meritocracia, além do controle e do monitoramento, são mantras da gestão empresarial e hoje fazem parte das políticas educacionais do estado.”

Em resposta a CartaCapital por ­e-mail, a Secretaria de Educação informou que o “Paraná fez um grande esforço para valorizar os professores e possui um dos maiores salários da categoria no País”. A pasta defendeu a proposta do pagamento de vouchers e o programa Escola Parceira, no qual os recursos públicos são destinados à gestão privada da educação, o que “permitiria às instituições de ensino receberem suporte na gestão administrativa, merenda, uniforme e reparos estruturais mais ágeis, liberando o diretor do colégio para que ele possa focar nas questões pedagógicas”. Na prática, trata-se da privatização dos serviços administrativos. A secretaria só não se pronunciou sobre as escolas cívico-militares. Em relação ao futuro, se Feder pretende implementar as mesmas políticas nas escolas paulistas, a nota foi lacônica: “O secretário Renato Feder não está comentando sobre seu futuro em São Paulo no momento”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1238 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título "Meritocracia às avessas "