A base da ciênciaSem educação e pesquisa, o Brasil nunca realizará seu potencial de desenvolvimento
Por Helena B. Nader* Petrobras e Embraer, duas gigantes mundiais nascidas do planejamento, inovação e esforço concentrado - Imagem: Embraer e Agência Petrobras

O Brasil nos últimos anos buscou afastar-se de forma sistemática dos valores democráticos. Este é mais um ano que deve entrar para a história como um período dramático na vida social, política e econômica do País, com a perda dos valores éticos e morais. Foi e tem sido difícil para todos, em especial para quem defende educação, ciência, cultura, direitos humanos, meio ambiente, saúde.

Quando olhamos para fora vemos um mundo no qual, apesar de todos os avanços científicos e tecnológicos, apesar da globalização, da esperança de uma sociedade mais pacífica, interligada e tolerante, ocorrem conflitos de toda ordem. Intolerância com a diversidade de gênero, raça e religião, violência urbana, diásporas e terrorismo. A intolerância com os imigrantes convive com o medo da fragilidade econômica, que produz o desemprego em larga escala em vários pontos do planeta. É muito difícil fazer julgamentos claros e uníssonos quando existem sociedades tão divididas.

Infelizmente, o mesmo ocorre no Brasil, com consequências semelhantes. Este cenário em nada contribui com a busca por saídas que levem o País de volta ao crescimento, à educação universal e com qualidade, ao desenvolvimento científico e tecnológico, em prol de uma nação mais justa, inclusiva, sustentável e que busca o bem-estar de todos.

Helena B. NaderPresidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), professora titular da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Repito aqui o depoimento que fiz quando da minha posse, neste ano, como presidente da Academia Brasileira de Ciências. O desenvolvimento sustentável foi definido pelas Nações Unidas como aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atender às suas próprias necessidades. Para que o desenvolvimento sustentável seja alcançado, é fundamental harmonizar três elementos centrais: o social, o econômico e o ambiental. Esses elementos estão interligados e são cruciais para o bem-estar dos indivíduos e das sociedades.

Nesse sentido, a erradicação da pobreza em todas as suas formas e dimensões é um requisito indispensável. Precisamos avançar em uma agenda econômica que envolva a geração de oportunidades para todas e todos, de forma sistêmica, solidária e justa.  E, na minha visão, educação e ciência, tecnologia e inovação são os motores para que a sociedade brasileira alcance a equidade.

Temos de lembrar, no entanto, que educação e ciência são atividades recentes na história do nosso país. Enquanto, na América Espanhola, as primeiras universidades surgiram no Peru e no México em 1551, aqui no Brasil, as primeiras escolas só começaram quando da imigração da família real portuguesa, em 1808. A partir desse período e com a proclamação da Independência e estabelecimento do império foram criados institutos e escolas que são referência até hoje em educação e ciência.

De 1985 para cá, o Brasil melhorou sua posição no ranking internacional de produção científica, apesar dos percalços - Imagem: Arquivo/Embrapa

Apesar de a nossa trajetória científica ser recente, devemos salientar que o desempenho da ciência brasileira tem sido bastante relevante nas últimas décadas. Em 1985, os trabalhos científicos publicados nas bases de dados da Scopus ou da Web of Science representavam perto de 0,35% da produção mundial. Hoje o Brasil responde por em torno de 2,8% dessas publicações. Demos maior visibilidade à nossa ciência, com o aumento de coautorias internacionais de 30,8% (2015) para 35,2% (2019), ainda inferior àquela da Argentina (50,5%), da média da América Latina (40,85%) ou da União Europeia (46,5%), de acordo com o relatório da Unesco de 2021. O mesmo relatório também mostra que o Brasil e a UE apresentam 2,4% das publicações científicas envolvendo coautoria entre os setores acadêmico e empresarial, enquanto esses valores para a Coreia do Sul equivalem a 3,9% e 4,4% para a Alemanha. Mais de 90% dessa produção científica tem sua origem nas universidades públicas, federais e estaduais e em institutos públicos.

Alguns outros dados relevantes para que possamos entender melhor a urgência para investimento em educação e CT&I. Em 2022, o Brasil ficou em 59º lugar entre 63 nações no Ranking Mundial de Competitividade (Fórum Econômico Mundial) e na competitividade digital fomos para a 52ª posição (­International Institute for Management ­Development). Já no Índice ­Global de Inovação entre 132 nações ocupamos a 54ª posição. De acordo com o Banco Mundial, enquanto os gastos com pesquisa e desenvolvimento (P&D) como porcentagem do PIB mundial foram de 2,63% (2020), no Brasil foram de apenas 1,21% (2019).

O Brasil figura ao lado das principais economias do mundo, situando-se entre a 9ª ou 12ª posição, a depender dos indicadores. A ciência brasileira foi fundamental para que o País alcançasse essas posições, desde a agricultura até a produção de petróleo e gás. Isso não se deu por acaso, mas por investimentos de longo prazo na pesquisa básica e fundamental até a tecnológica. Foi assim na agricultura, com o estabelecimento das primeiras escolas no fim do século XIX e início do século XX, como a Escola Agrícola da Bahia (1875), a Escola Agrícola Luiz de Queiroz (1901), e outras que formaram a base para a construção da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em 1973, tornando o Brasil uma potência agrícola na produção de grãos como soja e frutas, entre outros. A ciência e a tecnologia do Centro de Pesquisas da Petrobras (Cenpes) e das universidades brasileiras permitiram descobrir petróleo em águas ultraprofundas. Exemplos dos impactos da ciência na balança comercial brasileira não faltam, como o desenvolvimento e a produção de aeronaves, a automação bancária, o uso da biodiversidade brasileira para a indústria de cosméticos e inteligência artificial e robótica, entre outros. Ciência, tecnologia e inovação são responsáveis por grande parte do PIB brasileiro. 

Não podemos esquecer: educação e ciência não são gastos, mas investimentos

O mundo onde vivemos está em transformação, seja pela alteração do uso e cobertura do solo, seja pela alteração dos fluxos biogeoquímicos, desastres naturais, escassez de água, mudança de hábitos alimentares, mudanças climáticas, perda de biodiversidade, poluição global (rios, oceanos, terra, ar) e urbanização. E essas mudanças afetam a saúde local e global, pelo aumento ou aparecimento de novas doenças infecciosas e doenças não comunicáveis, pela segurança alimentar, saúde mental, educação e trabalho. Somente com ciência poderemos enfrentar esses desafios que se apresentam.

O que vimos nos últimos anos no Brasil foram, porém, cortes crescentes na educação e CT&I que nos colocam em uma posição bastante fragilizada no cenário global. De acordo com relatório da União Europeia, o investimento em pesquisa pública tem um retorno de três a oito vezes do valor aplicado e entre 20% e 75% das inovações não poderiam ter sido desenvolvidas sem a contribuição da pesquisa pública. O próprio Fundo Monetário Internacional afirma, em recente relatório, que o investimento em pesquisa básica pode ajudar formuladores de política a acelerar o crescimento econômico pós-Covid, pois é insumo essencial para inovação. O Brasil caminha na contramão do mundo no que se refere a investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D).

O planeta está em transformação e enfrenta vários riscos. A pesquisa tornou-se mais essencial - Imagem: iStockphoto

Ainda, é importante corrigir em perto de 66% os valores das bolsas de mestrado e doutorado, congeladas desde 2013, para recompor o poder aquisitivo. Precisamos formar pessoal qualificado para o nosso mercado de trabalho. Mas, nos últimos anos, estamos assistindo a uma diminuição na busca pela pós-graduação, em função da baixa remuneração e dos cortes em investimentos em CT&I. De acordo com o IBGE, o Brasil acumula há sete anos diminuição no número de empresas industriais. Há, portanto, necessidade urgente da reindustrialização. Por exemplo, o setor industrial da saúde pode desempenhar papel estratégico no processo de reindustrialização e modernização tecnológica do País, ao mesmo tempo que gera milhões de empregos, substitui importações, reduz as desigualdades e, principalmente, garante maior bem-estar a todos os brasileiros. Sem uma política de modernização e ampliação de nossa base produtiva e tecnológica, provavelmente o acesso universal da população à saúde ficará, no entanto, comprometido. Esse mesmo racional pode ser aplicado a outras áreas do chamado setor empresarial.

Lembro que sem investimento em educação não teremos ciência, tecnologia e inovação. O Banco Mundial coloca em seu Relatório de Desenvolvimento Mundial de 2018: “Os alunos de hoje serão os cidadãos, líderes, trabalhadores e pais de amanhã.  Portanto, uma boa educação é um investimento com benefícios duradouros”. A posição da economia brasileira nos mostra que recursos existem, mas faltam prioridades. Estamos começando um novo momento, no qual acredito que educação e ciência serão de fato consideradas e tratadas como políticas de Estado.

O mantra continua a ser: educação e ciência não são gastos, mas investimentos. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1240 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título "A base da ciência"