Solta a vozUma trilha sonora para novos tempos
Por Alberto Villas*Ismael Silva, Noel Rosa, Tom Zé e Geraldo Pereira: cronistas do perrengue de ser brasileiro - Imagem: Arquivo Nacional e André Conti

Depois de um apagão cultural que durou 48 meses, CartaCapital vira o disco e conta nove histórias de nove músicas que precisam ser ouvidas logo no alvorecer do novo ano, de uma nova vida. Descubra, uma a uma.

A primeira coisa que precisamos fazer é arranjar uma viração para o Nestor, que está vivendo em grande dificuldade. Nestor foi dispensado de uma fábrica de automóveis no ABC paulista há dois anos, e desde então nunca mais encontrou um trabalho fixo, juntando-se aos 10 milhões de desempregados deste país. 

Ele vive numa casa simples, própria, comprada nos anos 1970 com o suor do seu rosto, trabalho de todos os dias de 7 da manhã, quando batia ponto, até o pôr do sol, quando tomava banho na fábrica para eliminar um pouco da graxa e da fuligem do corpo e chegar em casa já razoavelmente perfumado.

Nestor tem vivido da ajuda da família, alguns membros caridosos que ainda têm trabalho. Seu primo de primeiro grau leva toda semana os alimentos básicos de uma cesta, nada de excesso. Esta semana, um pequeno mimo, um pacotinho de uvas pretas sem caroço, sua paixão.

Antonico, seu amigo mais próximo, personagem de Ismael Silva, também tem ajudado o Nestor. Já fez dois depósitos no Pix, cada um no valor de 50 reais! 

Desde que a pandemia apertou, quando o comércio fechou e a Covid-19 começou a matar centenas de brasileiros todos os dias, aquele brasileiro nunca mais comprou uma peça de roupa. Nada. Na verdade, a única compra que fez pelo e-commerce foi um par de Havaianas, já que a sua quebrou a tira, perda total. 

Alberto VillasJornalista e escritor. Autor de Admirável Mundo Velho, Carmo e Mil Tons, o Meu Millôr, entre outros livros.

Passava o dia em casa, ainda bem que recebendo uma ajuda da firma no fim do mês – que não era muita – vestido com moletons. Tinha três, um azul-marinho, um preto e um abóbora, presente do filho moderno que, no fundo, no fundo, ele detestava, usava pouco. Se sentia um funcionário da CET ou da Gol, brincava. 

Agora, aquele brasileiro se prepara para pegar um ônibus, percorrer quase mil quilômetros para assistir à posse do presidente que elegeu. Querendo mudar a sua conduta, ele pergunta pra mulher: com que roupa, com que roupa eu vou?

Com a grana curta, ele prometeu à esposa que, no ano que vem, vai mudar a sua conduta, vai pra luta porque quer se aprumar. 

Quando começou o segundo ano da pandemia, Joca foi obrigado a desocupar o imóvel onde vivia com a mulher e três filhos. Não teve jeito. Topou reduzir o salário pela metade, pois o restaurante em que trabalhava como garçom fechou as portas para a clientela e passou a servir quentinhas somente por delivery. 

Quatro funcionários foram despedidos e todos viram as lágrimas nos olhos do dono do bar e lanches. Ele ficou. Seu único consolo ainda era uma velha canção de um compositor baiano de Irará. 

Na vida, quem perde o telhado, em troca recebe as estrelas, pra rimar até se afogar. E de soluço em soluço esperar o sol que sobe na cama e acende o lençol.

Sem dinheiro para o aluguel, foi morar com o irmão, mas a casinha era tão pequena que a hospedagem não durou dois meses. Foi viver na rua e à noite acomodava-se na grande marquise de uma loja de baterias na Lapa. Ali, fazia o jantar num fogareiro emprestado do irmão, alimentava todos da família e ficava até o dia amanhecer. 

Dia 1º de janeiro ele volta a trabalhar em tempo integral, registro na carteira, salário no fim do mês. Acertou com o proprietário da casa onde morava. Vai voltar pra lá. 

O biscateiro Cademar vive de bico. Um conserto de telhado aqui, uma cerca ali, um desentupimento de pia acolá, um vazamento no teto, ele vai levando. 

Sambista desde a juventude, já compôs uma centena de sambas, nenhum gravado. Fã de carteirinha do compositor Geraldo Pereira, jurou para a esposa que no dia 1º de janeiro estará no Planalto Central para cantar para o presidente eleito um sucesso de 1951 do seu compositor predileto, uma canção chamada Ministério da Economia: 

“Seu Presidente  Graças a Deus não vou comer mais gato Carne de vaca no açougue é mato Com meu amor eu já posso viver”

Seu Presidente, 
Sua Excelência mostrou que é de fato 
Agora tudo vai ficar barato 
Agora o pobre já pode comer
Seu Presidente, 
Pois era isso que o povo queria 
O Ministério da Economia 
Parece que vai resolver 
Seu Presidente
Graças a Deus não vou comer mais gato 
Carne de vaca no açougue é mato 
Com meu amor eu já posso viver 
Eu vou buscar 
A minha nega pra morar comigo
Porque já vi que não há mais perigo
Ela de fome já não vai morrer 
A vida estava tão difícil 
Que eu mandei a minha nega bacana 
Meter os peitos na cozinha da madame 
Em Copacabana 
Agora vou buscar a nega
Porque gosto dela pra cachorro 
Os gatos é que vão dar gargalhada 
De alegria lá no morro

 Negro, 60 anos, Nego Teo já viveu todo tipo de preconceito e ameaças na comunidade onde mora. Quando a polícia chegava, costumava recolher todos os seis filhos num único cômodo da casa, para escapar das balas perdidas.

 Quatro escaparam.

 Aos 18 anos, aprendeu algumas palavras em francês com uma professora que foi morar no morro, recolher dados para o TCC na Université de Marseille. Ele ensinava português a ela e ela francês a ele.

 Hoje só guarda algumas poucas palavras, as básicas como merci, comment ­allez vous, comment tu t’apelle. Seu francês renasceu alguns anos atrás, quando ouviu pela primeira vez Gilberto Gil cantando na língua daquela professora. 

 Deu um jeito de arrumar um Petit ­Robert para fazer a tradução e ficou encantado.

 Nos últimos quatro anos, foram dezenas de mortos onde mora. Quase todos pretos e a desculpa da polícia foi sempre a mesma: confronto e eles atiraram primeiro. 

 Tem esperança, sim, que em 2023, como em 24, 25 e 26, a vida vai melhorar para os pretos. Por isso, voltou a recitar os versos do compositor baiano porque a esperança não morreu:

 Touche pas à mon pote!

Gil, Emicida, Valença, Belchior e Os Titãs: ano passado eu morri, esse ano eu não morro. E quem escuta os sinais? - Imagem: Renato Luiz Ferreira, Hallit, Júlia Rodrigues e Redes sociais

Ele sabe que a força que faz Jean-Paul Sartre pensar é a mesma que faz jogar Yanick Noah. Que faz Charles ­Aznavour cantar, que faz Jean-Luc Godard filmar e que faz Brigitte Bardot encantar. 

 Os versos dos cantadores Zé Limeira, Orlando Tejo e Otacílio Batista, escritos há mais de cem anos, provocaram muita briga. Reescritos por Belchior em 1976, voltaram à tona no ano passado na voz do rapper Emicida e promete ser o hit de 2023:

 Eu já cantei no Recife/ Dentro do Pronto-Socorro/ Ganhei duzentos mil réis/ Comprei duzentos cachorro/ Morri no ano passado/ Mais esse ano eu não morro. 

Não se sabe ao certo se os versos são mesmo apenas de Zé Limeira. A família dele jura que os versos são dele, um repentista e cantador analfabeto que nunca teve uma carteira de identidade. 

 Foram quase 700 mil mortos até novembro passado. Muitos sobreviveram, apesar dos pesares. No ano passado Leonor passou fome e frio. Aperto e desassossego. Passou noites em claro pensando nos boletos atrasados.

 Viu o presidente dar Reuquinol pra ema, dizer que mão era coveiro e que ia matar a petralhada. Ela jurou de pés juntos que ia trabalhar duro para tirar essa praga do poder. Montou um pequeno altar em casa, com santos que iam de Santo Antônio, Santa Edwiges, São Longuinho, São Tomé, São Benedito e um boneco do papa João Paulo II dando tchau graças à energia solar. 

Tem fé quando pede pra Alexia tocar Emicida e ela dispara:

Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro!     

E completa:

Em 22 eu morri, mas em 23 eu não morro!

 O velho roqueiro entrou e saiu de todas. Cantou o samba de uma nota só ao ver o barquinho ir e a tardinha cair. Colocou brilhantina no cabelo e requebrou ao som de Bill Haley e Seus Cometas cantando Rock Around the Clock e cantava como ninguém, It’s Now or Never. Mergulhou de cabeça na Tropicália. Brasileiro, confessou sua culpa, seu pecado, seu sonho desesperado, seu bem guardado segredo. Jura que aqui é o fim do mundo, o terceiro mundo. Pediu a bênção e foi dormir entre cascatas, palmeiras, araçás e bananeiras, ao canto da juriti.

Depois veio o punk rock e ele deu nome aos bois, ao lado dos Titãs, outrora Titãs do Iê-Iê-Iê, recitando a lista da repressão e da canalhice: Garrastazu, Stalin, Erasmo Dias, Franco, Lindomar Castilho... E tinha muito mais: Afanásio, Dulcídio Wanderley Boschilia, Augusto ­Pinochet, Gil Gomes, Reverendo Moon, Jim Jones, General Custer, Flávio Cavalcanti, Adolf Hitler!

Como adora mudar as letras das canções, no ano que vem promete cantar: Jair, Onyx, Heleno, Carla ­Zambelli, Eduardo Pazuello, Ricardo Salles, Eduardo, Carlos, Bia Kicis...

Brasilino mora em Brasília desde 1958. Viu a pedra fundamental ser colocada por JK e gosta de contar casos de quando a cidade era só terra vermelha, candangos e tratores amarelos rasgando o Cerrado, obras subindo, palácios surgindo do nada.

“Tu vens, tu vens Eu já escuto os teus sinais Tu vens, tu vens Eu já escuto os teus sinais”

Viu Brasília crescer, ganhar sinais de trânsito que nunca estiveram nos planos originais. Viu passar governos de Jânio, de Jango, viu a ditadura, viu Collor de Melo, Itamar, FHC, Lula, Dilma, Temer, Bolsonaro. Acompanhou e sofreu muito com aquela novela do sítio em Atibaia, todo dia um capítulo novo no Jornal Nacional. Deixou de comprar a Veja, tinha certeza de que o tríplex do Guarujá não era do Lula. Seguiu todos os passos da vigília em Curitiba e, a mais de mil quilômetros de distância, gritava ao escurecer pela janela do seu apartamento na SQS 405: Boa noite, presidente Lula!

Hoje uma música grudou no seu cérebro que nem chiclete e ele canta todos os dias no banheiro do novo apartamento, na SQS 406, em frente ao que morava:

A voz do anjo sussurrou no meu ouvido
Eu não duvido já escuto os teus sinais
Que tu virias numa manhã de domingo
Eu te anuncio nos sinos das catedrais
Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais
Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais

 O Álvaro resolveu deixar de lado aquelas canções visadas pelos militares. Só de Chico, cinco: Apesar de Você, O Que Será, Cálice, Meus Caros Amigos e Acorda Amor. De Vandré, Caminhando e Cantando, de Sérgio Sampaio, Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua e, de Caetano, É Proibido Proibir. 

Quer começar o ano vestido de branco, com três palmas nas mãos, também brancas, para jogar no mar. Começar 23 com uma nota de 1 dólar bem dobrada na carteira, sete sementes de uva, acordar com o pé direito ao som de Que Tal um Samba?, do Chico:

 Um samba

Que tal um samba?
Puxar um samba, que tal?
Para espantar o tempo feio
Para remediar o estrago
Que tal um trago?
Um desafogo, um devaneio
Um samba pra alegrar o dia, pra zerar o jogo
Coração pegando fogo e cabeça fria
Um samba com categoria, com calma
Cair no mar, lavar a alma
Tomar um banho de sal grosso, que tal?
Sair do fundo do poço
Andar de boa
Ver um batuque lá no Cais do Valongo
Dançar o jongo lá na Pedra do Sal
Entrar na roda da Gamboa

 

MÚSICAS CITADAS:
Antonico (Ismael Silva)
Com Que Roupa? (Noel Rosa)
Solidão (Tom Zé)
Ministério da Economia (Geraldo ­Pereira)
Touche Pas à Mon Pote (Gilberto Gil)
Sujeito de Sorte (Belchior)
Nome aos Bois (Titãs)
Anunciação (Alceu Valença)
Que Tal um Samba? (Chico Buarque) •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1240 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título "Solta a voz"