O caldeirão de LimaPeruOs manifestantes intensificam os protestos e tomam as ruas da capital. O governo responde com violência
Por Sergio Lirio Frágil. Empossada para estabelecer a paz, Boluarte recorreu ao estado de emergência. São 50 mortes em um mês - Imagem: Melina Mejia/Presidência do Peru e Ivan Flores/AFP

A extensão por 30 dias do estado de emergência em Lima, Cuzco e Puno, além da província de Callao e de cinco rodovias, não é demonstração de força, mas a prova da incapacidade da presidente Dina Boluarte em conduzir o Peru à mínima estabilidade política e social. Boluarte assumiu o posto em 7 de dezembro, por escolha do Parlamento, no momento mais conturbado da desvairada história recente do país. Seu antigo chefe, o neófito e atrabiliário Pedro Castillo, de quem era vice e ex-ministra do Desenvolvimento e Inclusão Social, acabara de ser detido após ensaiar um autogolpe em reação ao fraudulento processo de impeachment, o terceiro em um ano e meio de mandato, em tramitação no Congresso, covil de oportunistas. Seguindo as regras constitucionais, mas à revelia da opinião popular, a ex-ministra foi convocada às pressas e ungida a primeira mulher a comandar os peruanos, incumbida da missão de “apaziguar os ânimos”. Ao tomar posse, condenou a manobra do companheiro de chapa, prometeu desbaratar as “máfias” no setor público, abrigar nos gabinetes “todas as forças democráticas” e preparar o terreno para as eleições de 2024, blablablá, blablablá e blablablá. A pax imposta pela elite parlamentar, judicial, militar e econômica não durou, porém, nem o tempo de produção da nova foto oficial do poder. Os primeiros protestos nas províncias explodiram na noite da prisão de Castillo. Oito dias depois, Boluarte decretou estado de emergência, vigente em todas as regiões, e toque de recolher nas principais cidades e áreas conflituosas.

Tudo correu como o esperado nesse tipo de intervenção, tão trágica quanto repetitiva, na América Latina. O uso da violência não deteve os manifestantes, pobres e indígenas em sua maioria, apenas produziu um compêndio de violações que, cedo ou tarde, preencherá os escaninhos da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Até a terça-feira 17, quando manifestantes de diversos pontos do país, conduzidos por lideranças aimarás, se dirigiam a Lima para reforçar a convocatória de greve geral, os pela repressão somavam 50. Segundo reportagem do jornal La República da mesma terça, durante os protestos em Ayacucho, cidade na região sul, em 15 de dezembro, início do estado de emergência, as forças de segurança agiram para matar, não para controlar os levantes. “Nos autos há um padrão de lesões em áreas vitais: abdome, tórax e cabeça (...) Houve intenção”, afirmou ao diário Gloria Cano, advogada e ativista. Em Andahuaylas, o Ministério Público abriu investigação contra o general Luis Jesús Flores Solís e o coronel Alexis ­Luján Ruiz por seis assassinatos. Denúncias semelhantes pipocam em outras regiões.

A presidente Boluarte estendeu o estado de emergência e o toque de recolher por 30 dias

A tensão nas ruas só aumenta desde então. Embora o governo transitório atribua a insatisfação a um “grupo minúsculo empenhado em sangrar o país”, as manifestações ganharam tração ao longo do mês e desembocaram na peregrinação de insatisfeitos que inundou as ruas de Lima na terça 17. A prorrogação do estado de emergência aconteceu 48 horas após Boluarte apelar, sem grandes efeitos, à boa vontade dos eleitores. Desaprovada por 72% da população, que exige a dissolução do Congresso e a antecipação do calendário eleitoral, a presidente, em pronunciamento na sexta-feira 13, pediu “perdão” aos peruanos, admitiu ter cometido erros “na procura por paz e tranquilidade”, mas rejeitou a proposta de renúncia. “Meu compromisso é com o Peru”. Quatro dias depois, diante da “Tomada de Lima”, voltou a criticar os opositores. “O fechamento do Parlamento é pretexto para continuar o bloqueio das estradas. Não há razão para polarizar. Vamos trabalhar em uma ampla unidade.”

Apesar da gestão desastrosa, da inabilidade política, da traição às propostas de campanha, do moralismo caipira e do caudilhismo primitivo, o sindicalista Castillo manteve apoio popular considerável. Da cadeia, onde mantém certos privilégios, o presidente deposto, via Twitter, dirigiu-se aos manifestantes.  “Por que tenho eu de fugir do país? Onde está a evidência de que quero fugir? Não matei, não roubei, não prejudiquei ninguém”, escreveu na rede social. “Também não me foi concedido o direito de defesa, conforme determina a lei peruana.” Desde 17 de dezembro, ­Castillo cumpre prisão preventiva de 18 meses e é investigado pelos crimes de rebelião, formação de quadrilha, abuso de autoridade e perturbação da paz pública. A mulher e os filhos exilaram-se no México.

Com seis presidentes em quatro anos, o Peru conseguiu elevar a crise permanente à enésima potência. Não se pode descartar uma nova tentativa de golpe, uma guerra civil ou o retorno do embate entre a guerrilha e os paramilitares. Uma das figuras mais macabras do país, Vladimiro Montesinos, ex-assessor do ditador Alberto Fujimori, que cumpre pena de 25 anos pelos massacres em Barrios Altos e La Cantuta, quando encapuzados a serviço do governo executaram 15 supostos guerrilheiros, entre eles um menino de 8 anos, teria se oferecido ao comando militar para convencer seu colega de prisão, o Camarada Feliciano, um dos líderes do Sendero Luminoso, a interromper as manifestações. Segundo ­Montesinos, os protestos foram planejados pelo grupo. As autoridades, relata a mídia local, consideraram a oferta uma tentativa de envenenar a população e, ao mesmo tempo, obter vantagens no presídio.

Para o historiador Gustavo Montoya, da Universidade Nacional Maior de San Marcos, uma eventual renúncia de ­Boluarte não teria o condão de acalmar os ânimos. “As reivindicações tomariam outro rumo. Será necessária uma enorme capacidade de imaginação para criar as condições de um entendimento”. Infelizmente, imaginação é produto em falta no país. Recomenda-se aos peruanos revisitar o poeta Manuel Scorza. “A história pertence a quem a prolonga”, afirmou. “Não a quem a sequestra.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1243 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título "O caldeirão de Lima"