Extremo desafioPCIDe como Enrico Berlinguer livrou o comunismo italiano da tutela soviética para reconhecer o valor universal da democracia
Por Mino CartaGiulio Andreotti, devorador de hóstias a serviço de Washington - Imagem: Alessandro Di Meo/AFP

Saiu recentemente pela Editora Alameda A Invenção da Democracia como Valor Universal, de autoria do professor Marco ­Mondaini, experiente intelectual com graduação e doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestrado na USP, em São Paulo, e pós-doutoramento pela Universidade de Florença, na Itália. Ele também conta no currículo com pesquisas sistemáticas realizadas no Instituto Gramsci, em Roma, e Estágio Sênior na Universidade Eduardo Mondlane, em Moçambique.

Na obra, Mondaini traça a trajetória ideológica do Partido Comunista Italiano, a partir dos Cadernos do Cárcere de Antonio Gramsci até a “Terceira Via”, definida por Enrico Berlinguer ao consagrar o afastamento da União Soviética para lançar as bases do comunismo europeu. Gramsci é o inspirador de Palmiro Togliatti, em 1958 vítima de um atentado à bala que agitou a Itália a ponto de ameaçar uma verdadeira revolução. Ocorre que naquele dia o ciclista Gino Bartali ganhara a Volta da França e o gáudio popular com o feito esportivo superou qualquer vontade revolucionária.

Este enredo deságua finalmente na ideia do chamado Compromisso Histórico à sombra do resultado das eleições de 1974, quando o Partido Democrata-Cristão, que estava no comando do governo, obteve 36% dos votos e o Partido Comunista, na oposição, conseguiu 34%. Foi então que se concretizou a perspectiva do Compromisso, ou seja, um acordo capaz de selar uma garantia de hegemonia bipartite na política da península. O plano malogrou por completo pela ação das Brigadas Vermelhas, infiltradas pela CIA, ao sequestrarem o líder da esquerda do Partido ­Democrata-Cristão, Aldo Moro.

Gorbachev reconheceu a influência de Berlinguer. E o Muro de Berlim caiu - Imagem: Arquivo/AFP e Vitaly Armand/AFP

Comandava então o governo do país o primeiro-ministro Giulio Andreotti e o presidente da República era Francesco Cossiga, notoriamente tíbio. Andreotti, apaniguado da embaixada americana então ocupada pela senhora Clare Boothe Luce, mulher de Henry Luce, dono do poderoso Grupo Time-Life, ali estava a serviço de Washington. Andreotti foi admiravelmente retratado no filme Il Divo, do diretor Paolo Sorrentino, interpretado por Toni Servillo. Sorrentino já havia dirigido A Grande Beleza, premiado com o Oscar, na interpretação do mesmo Servillo. Pois o Divo não cedeu aos pedidos de resgate e permitiu que Moro fosse assassinado no cativeiro, depois de um longo período de prisão que comoveu a península, mas deixou de cílios enxutos o primeiro-ministro e o presidente da República.

O corpo de Moro foi encontrado meses após no porta-malas de um carro, na esquina da rua em que ficava a sede central do Partido Comunista, em Roma, na proximidade do Capitólio. Andreotti, campeão da hipocrisia, mantinha amáveis relações com a Máfia e notórios eram os encontros dele, iniciados com um beijo recíproco, com Totò Riina. Embora acusado como mandante do assassinato do jornalista Mino Pecorelli, impunemente viveu e impunemente morreu na sua casa romana, cercado pela família em prantos. Era um devorador de hóstias sagradas, católico praticante.

O corpo de Moro abandonado no porta-malas de um carro no centro de Roma, sob o olhar de Cossiga, presidente desastrado - Imagem: Arquivo/AFP e Alessandra Tarantino/AFP

De todo modo, Berlinguer continuou fiel às suas ideias e princípios e era visto a levar de carro a sua família, mulher e filhos, às 11 horas da manhã, até a Igreja de Cristo Rei, em Roma, e os esperava até o término da missa. O projeto do Compromisso Histórico naufragou e nem por isso a linha do Partido Comunista Italiano sofreu qualquer alteração. Não demoveu o líder comunista o atentado encomendado por Moscou sofrido numa visita à Bulgária, tampouco o confronto com as autoridades soviéticas até o dia em que Mikhail Gorbachev, ao assumir o comando da Rússia, confessou ter sido muito influenciado por Berlinguer e seu pensamento.

Escreve Mondaini: “Evidentemente, o que mais impactou Gorbachev e o grupo de reformadores soviéticos responsáveis pela implementação da Perestroika e da Glasnost, foi o discurso berlingueriano sobre o valor universal da democracia”. E este é o componente mais forte da ideia do Compromisso Histórico tão bem trazida à tona pelo livro de Mondaini. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1243 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título "Extremo desafio "